entrevista
com
flávia viana ____
Nos últimos dois dias, a Soonyoung Brasil trouxe duas reportagens referentes ao #VidasNegrasImportam a partir de uma entrevista com a socióloga Flávia Viana. Algumas coisas infelizmente tiveram que ficar de fora, por isso trago a entrevista na íntegra para provocar mais reflexão sobre o tema.
Soonyoung Brasil: George não foi o primeiro e infelizmente não será o último, mas por que você acha que sua morte fez com que o Black Lives Matter ganhasse uma nova força?
Flávia Viana: Acredito que essa nova levantada do Black Lives Matter pode ser também compreendida através do próprio momento em que George foi assassinado. Ele foi alvo de uma abordagem policial, como sabemos, e morto devido à violência utilizada pelo policial Derek Chauvin. Mas dois fatores tornam a situação ainda mais chocante: o fato de George ter manifestado seu desconforto com a violenta tentativa de contenção de Derek ao avisar repetidas vezes que não conseguia respirar, e a filmagem de sua morte. Fazemos parte de uma sociedade racista em que a força policial é instrumento de coerção de um Estado que marginaliza cidadãos pretos e de minorias raciais, e assistir um episódio de abuso policial tão evidente ocorrendo no meio da rua, em dia claro, parece ter mexido bastante com as pessoas, e principalmente os mais jovens, o que levou muitos - sendo estes pretos e não-pretos – à exigir que a morte de George não ficasse impune quando existem filmagens que dificilmente permitiriam que a narrativa fosse virada a favor dos policiais, como é o mais comum.
De maneira mais sucinta possível, vale também observar que, considerando em um cenário mais amplo, os Estados Unidos estão atualmente sob o comando de um líder como Donald Trump, famoso por posicionamentos que vão contra os ideais de grande parte da população jovem do país, além deste ser um ano eleitoral em que a política do país pode mudar de direção, o que certamente fortalece movimentos antirracistas que adotam como uma de suas demandas mudanças estruturais e cortes de financiamento à polícia.
SB: Como você enxerga o movimento BLM dentro do Brasil?
FV: A comoção gerada pela morte de George Floyd na mesma semana em que perdemos outro menino preto, João Pedro, motivou nossa adesão às manifestações nas redes sociais e nas ruas, e, na minha opinião, é possível observar a referência – e eu não falo de uma referência particularmente boa, mas sim que ela existe diante de muitas situações - que o Estados Unidos exerce sobre o restante do mundo. Aqui no Brasil nos deparamos com diversas mortes violentas em contextos parecidos, com filmagens e testemunhas, contudo o sucesso das nossas exigências de punição aos envolvidos é consideravelmente menor. Nossos casos, aliás, são muito mais corriqueiros que nos Estados Unidos e homens negros compõem o grupo que mais morre no país, mas por aqui as notícias do genocídio da população negra não são recebidas com tanta solidariedade e/ou revolta pela população não-preta, o que, em nosso atual momento, é incrivelmente sintomático da nossa sociedade e torna questionável o engajamento de muitas pessoas à luta por George Floyd.
Nós, pretos brasileiros, lidamos constantemente com o racismo estrutural e questões complexas inerentes à nossa realidade, e travamos a nossa própria luta para lembrar a sociedade que as vidas negras não devem ser banalizadas e para que casos como o de João Pedro, Amarildo Dias e Claudia Silva não caiam no esquecimento. Em um país em que, segundo a ONU, um jovem negro era assassinado a cada 23 minutos até poucos anos atrás, as vidas dos nossos não podem depender do oportunismo e de um eventual interesse dos outros setores da nossa sociedade. A pressão por mudanças não deveria esperar a morte brutal de outra pessoa preta virar notícia nos meios de comunicação ou uma hashtag. Todas as notícias possíveis já foram dadas, e aqueles que acreditam que as vidas negras efetivamente importam têm plena consciência de que precisam utilizar seu privilégio em prol da luta antirracista constantemente porque aqui casos assim acontecem o tempo todo.
SB: Pelo menos online, vejo que houve uma diminuição em levantamento de TAGs sobre o movimento. Você também percebe essa mudança? Por que acha que isso aconteceu?
FV: Essa diminuição de engajamento online é evidente e eu poderia muito bem atribuir o motivo à prisão dos policiais envolvidos na morte do George, mas para mim essa é uma questão que vai além, pois apesar do inegável aumento do alcance do Black Lives Matter em 2020 em comparação a última vez que o movimento levou uma quantidade considerável de pessoas às ruas, em 2014, eu acredito que a movimentação de vários setores (marcas, artistas, políticos, canais de televisão, a mídia...), e não uma real compreensão da ideia por trás do movimento em si, tenha sido determinante para tornar a hashtag viral.
Muito do engajamento nas redes sociais e manifestações a favor do movimento se devem a influência exercida pelo grupo sobre os indivíduos, e talvez seja mais fácil notar isso agora que há uma queda no empenho de levantar tags. Como em um ciclo, à medida que as hashtags do BLM cresciam, mais pessoas se juntavam ao movimento e porque mais pessoas se juntavam ao movimento, as hashtags cresciam. Agora eu vejo que muitas delas estão voltando ao normal com a sensação de trabalho cumprido após duas semanas de postagens “normais” suspensas e o uso de suas plataformas para chamar atenção ao movimento, e partir do momento em que elas se sentem confortáveis para retornar suas atividades, outras também se sentem à vontade para fazê-lo.
Felizmente, o Black Lives Matter
não é somente uma hashtag”
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Felizmente o Black Lives Matter não é uma somente uma hashtag, e os motivos que tornaram o seu nascimento necessário precisam ser lembrados não somente enquanto hashtags estavam sendo compartilhadas por artistas ou enquanto os assassinos de George Floyd estavam soltos.
SB: Tivemos o episódio do Hoshi no weverse, e muitos fãs o defenderam de forma agressiva (o que atingiu algumas pessoas que estavam machucadas). A gente pode acreditar que houve uma tentativa de invalidação da dor do outro?
FV: Sim. No Twitter, onde a repercussão foi maior, nos deparamos com diversos tweets de pessoas partindo em defesa do Hoshi, e uma maioria estava focada em desmerecer as expressões de tantos outros fãs que se sentiram incomodados com o post do Weverse. A vida em sociedade demanda muita sensibilidade e sensatez para lidar com diferentes vivências, além de cuidado com o espaço de fala do outro, mas o que eu vi foi uma completa falta de noção dessa compreensão de que as pessoas incomodadas com o post têm suas razões e estão em seu total direito de externar seu desconforto. Como já foi bem colocado anteriormente, é preciso entender que quando pisamos no pé de alguém, não cabe a nós determinar se doeu ou não.
Se acreditarmos que houve tal tentativa, por que você acha que ela aconteceu?
FV: Diante desses tweets que continham xingamentos totalmente desnecessários e que eram de uma intolerância enorme em relação a posicionamentos contrários, acredito que eles tenham partido majoritariamente de um grupo de pessoas que, diante do histórico de episódios que atingiram proporções enormes e se tornaram escândalos no Kpop, tenham talvez se sentido enquanto fãs no dever de minimizar uma situação que enxergaram como ameaça ao Hoshi. Mas agindo dessa forma, eles assumiram uma postura que invalida a dor e demais sentimentos de outros tantos fãs, e que basicamente diz: “Mesmo que você se diga machucado, o que quer que você tenha a dizer não me importa e está automaticamente errado porque eu não consigo enxergar os seus motivos” e “se eu não me ofendi com o que ele disse, você também não deveria se ofender”. Eu uso como referência a situação do Weverse e a repercussão que veio após quando digo isso, mas é algo que deveria ser aplicado em um contexto mais amplo porque é importante que se perceba que quando nós blindamos alguém de criticismo, tiramos dos ofendidos e incomodados com as ações dessa pessoa a possibilidade de um pedido de desculpas; e tiramos da pessoa que estamos tentando proteger, também, a oportunidade de aprender com seus erros, dando assim o aval para que eles se repitam.
SB: Essa invalidação pode ser considerada também um silenciamento de vozes negras e de pessoas LGBTI+?
FV: Sim, e esse é um movimento crescente. Embora não seja restrito à internet, em uma sociedade hiperconectada, as mídias sociais têm se tornado veículo de propagação da agenda de silenciamento de minorias sociais. À medida que as pautas que competem ao povo preto, aos povos indígenas e ao movimento LGBTI+ ganham espaço, as formas de silenciamento também se refinam, se adaptam, e é essencial estarmos sempre atentos aos nossos discursos, ao que aceitamos de nossos círculos sociais, e nos tornarmos capazes de discernir o que é nossa opinião e o que é influência externa, para que nossos posicionamentos não contribuam, ainda que em menor escala, com estruturas que sempre excluíram e invalidaram as experiências de grupos marginalizados.
#VidasNegrasImportam
Neste link, é possível encontrar diversas formas de agregar ao movimento #VidasNegras Importam. Há documentos com textos importantes para entender sobre o racismo (em português e inglês) e o próprio movimento Black Lives Matter, dicas para protestantes, petições, doações e também um modo de contribuir para aqueles que não possuem condição financeira para tal.